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Quando decidiu organizar o arquivo deixado pelo pai, o escritor Rubem Fonseca, a autora e pesquisadora Bia Corrêa do Lago acreditava que resolveria em pouco tempo. “Ele sempre dizia que não anotava nem guardava nada”, conta ela, que se surpreendeu com o imenso e valioso material. Fonseca morreu em abril de 2020, a poucos dias de completar 95 anos, e deixou uma variedade de documentos, desde manuscritos e anotações até fotos ao lado de personalidades e declarações de imposto de renda.
“Descobri que meu pai não jogava nada fora”, conta Bia, que iniciou a catalogação ainda em 2020 e logo ficou surpresa com a diversidade encontrada. “Tem de tudo: escritos de juventude, cartas do irmão mais velho que foi para a guerra, contos e romances corrigidos, manuscritos inéditos e também caixas e caixas de papeizinhos, guardanapos, cartões postais. Agora, com esses documentos, eu sei mais sobre ele.”
Descobriu, por exemplo, que Rubem Fonseca, o escritor que forjou um estilo seco de escrita, sem qualquer ornamento, mas altamente sofisticado para parecer que ali não havia esforço literário algum, enfim, o autor que introduziu a violência crua no gênero policial brasileiro contemporâneo era também poeta.
“Encontrei mais de 50 poemas escritos por ele, mas nada lírico - o estilo lembra algo brutalista, semelhante ao da prosa dele. É como se fosse um conto enxugado ao seu extremo. E o resultado é ainda mais duro porque não tem o mesmo espaço da prosa.”
Bia pretende encaminhar o material poético para apreciação do escritor, professor e tradutor Paulo Henriques Britto. Na verdade, diante da variedade, deverá convidar outros artistas para o mesmo tipo de tarefa. “Descobri um romance epistolar inédito, Manoel e Leia, sobre um homem em Berlim que se corresponde com uma mulher que não sei se é esposa ou namorada, pois está desestruturado, necessitando do trabalho de um especialista.”
Ela até importou uma máquina capaz de abrir o arquivo de disquetes, antigo dispositivo de armazenamento que Fonseca guardou em grande quantidade e que poderá também revelar novas surpresas.
Enquanto isso, seu foco está em dois lançamentos. Primeiro, no box com todos os contos de Rubem Fonseca que a Nova Fronteira envia para as livrarias em maio, já em comemoração ao centenário de nascimento que acontece no dia 11.
Além de clássicos como Feliz Ano Novo, O Cobrador e Lúcia McCartney, a caixa com três volumes contará com dois contos inéditos, selecionados por Bia entre os que encontrou no arquivo.
“Escolhi textos muito distintos, mas já com as características que marcariam sua obra no futuro. São do jovem Fonseca, escritos em 1948, ou seja, 15 anos antes de seu primeiro lançamento oficial”, conta.
“Natal é muito pungente, sobre os desencontros e a solidão humana, mas também de como um amor pode brotar nesse descompasso (Leia um trecho com exclusividade). Já Arinda é sobre um homem obcecado por uma mulher com esse nome. Aos poucos, o leitor descobre que esse homem é um escritor e isso provoca uma reviravolta”, adianta a filha do autor.
O box especial não apenas compila toda a produção de Fonseca, mas também apresenta a versão revisada conforme suas próprias anotações graças aos textos inéditos, anotações e correções feitas pelo próprio autor em seus exemplares pessoais, cedidos por Bia. Manuscritos de Feliz Ano Novo, por exemplo, mostram que o primeiro título pensado por Fonseca era Réveillon. “Aí ele riscou e colocou o que ficou eternizado.”
Fotobiografia de Rubem Fonseca
Bia se dedica diretamente no outro projeto, o de uma fotobiografia, que pretende lançar no final do ano, pela editora Capivara. São inúmeras imagens, como do casamento de seus pais e também do dele, com Théa Mauad, as casas onde morou, momentos no exército, as viagens internacionais. Também encontros com escritores brasileiros (como Lygia Fagundes Telles, com quem cultivou uma amizade marcada pelo humor e carinho) e estrangeiros (como o colombiano Gabriel García Márquez), além de personalidades como Pelé e Carmen Miranda.
“Para muitas pessoas, vai ser uma apresentação de quem realmente foi ele. Eu mesma descobri que meu pai era muito na dele. Pouco falava de si e de sua obra, mas descobri várias críticas guardadas, a maioria favoráveis aos seus livros, além de muitos prêmios, teses de mestrado e doutorado.”
Rubem Fonseca escolheu não dar entrevista ou divulgar seus livros
Bia reconhece que a irredutível decisão de Fonseca de não dar entrevistas ajudou a distanciar o público em geral da obra dele. “Também não era bom quando as editoras precisavam divulgar os novos livros, mas Rubem acreditava na importância de ser livre para escrever, as pessoas gostando ou não. Ele questionava: ‘como alguém pode ser escritor e ter a cara conhecida?’.”
Ao longo da vida, Fonseca exerceu diversas funções. Nasceu em 11 de maio de 1925, em Juiz de Fora, Minas Gerais, e, antes de se aventurar pela literatura, formou-se em Direito na UFRJ e construiu uma carreira de seis anos na polícia civil, como comissário, em São Cristóvão. Também trabalhou como office-boy, escriturário, revisor de jornal, professor de administração pública na FGV e executivo da Light no Rio.
Como leitor, sua preferência rondava clássicos e vertentes do gênero policial, de nomes como Rafael Sabatini, Edgar Allan Poe, Emilio Salgari, Michel Zévaco, Ponson du Terrail, Karl May, Julio Verne e Edgar Wallace.
Em paralelo, cultivava interesse pelo cânone ocidental (Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare e Cervantes), bem como dos modernos (Dostoiévski, Maupassant, Proust). Seus primeiros contos publicados apareceram nas revistas O Cruzeiro e Senhor, no início dos anos 1960.
Rubem Fonseca estreou em livro em 1963, com a reunião de contos Os Prisioneiros. Depois viriam suas obras mais conhecidas, que o consagraram como escritor de literatura policial: Feliz Ano Novo, Lúcia McCartney, O Caso Morel, A Grande Arte e Agosto, que foi adaptado pela TV Globo, em minissérie homônima nos anos 1990.
Ele foi um dos grandes expoentes do conto como gênero literário, principalmente nas décadas de 1960 e 1970, quando esse tipo de escrita enxuta foi utilizada por diversos escritores brasileiros para retratar a realidade urbana, convulsiva e fragmentada. Fonseca, com sua linguagem dinâmica e veloz, trazia para a literatura os dramas cotidianos vivenciados pelos habitantes das grandes metrópoles.
A obra de Rubem Fonseca
“Percebo que a obra de Rubem Fonseca pode ser dividida em três fases”, comenta o escritor e crítico literário Silviano Santiago. A primeira, no seu entender, compreende de Os Prisioneiros (1963) a Feliz Ano Novo (1975), em que o conto predomina e com o qual Fonseca usa a violência para desmistificar a cordialidade do brasileiro. A segunda fase é dominada por romances, de A Grande Arte (1983) a O Selvagem da Ópera (1994), textos mais elaborados e fartamente documentados.
“O último grupo é extremamente fascinante, mas dificilmente é aceito pelos leitores mais antigos”, explica Santiago. “O livro A Confraria dos Espadas (1998) e os que vieram em seguida são muito chocantes porque não trazem mais aquele realismo dos contos, nos quais sobressaía uma violência estúpida. O estilo que ele desenvolve aqui é algo praticamente beckettiano, uma fala da derrisão, ou seja, do riso zombeteiro.”
Segundo o crítico, a questão lhe interessou particularmente porque tem relação com a velhice e como os escritores reagem a esse assunto depois de uma certa idade. “Ele escapa completamente do que em geral é feito pelo escritor brasileiro, que são as memórias e, em especial, as da infância. O que me fascina em Rubem é a coragem de evitar o estilo Meus Verdes Anos e preferir o de Marques de Sade como guia para questões que sempre lhe interessaram, como a da violência brasileira.”
Silviano Santiago entende o estranhamento da crítica em relação aos livros dessa fase final porque Fonseca preferiu um caminho dificilmente aceito na literatura brasileira. Ele cita o conto Enfermeiro do Bem, em que o protagonista, inicialmente ativo e com vida social, é convencido por um amigo médico a realizar uma cirurgia que o transforma em um homem passivo e dependente. “É de uma violência absurda. Uma crítica do senso comum.”
“É uma maneira de descrever a velhice do artista”, continua. “Algo que se transformou inclusive em um gênero, com Machado de Assis tentando fazer isso no Brasil, assim como Fernando Sabino com Encontro Marcado. Lá fora, tivemos Um Retrato do Artista Quando Jovem, do James Joyce, e Malone Morre, de Samuel Beckett. Rubem foi mais corajoso, mas não compreendido. Ele não revela, nessa terceira fase, um moralismo que está presente nas outras duas. Rubem oferece uma outra visão de mundo, mais audaciosa porque, se a luxúria é aceita no Brasil, a fobia aos sexos opostos não é.”
Santiago assina um dos textos analíticos que acompanham o box com os contos.
Com essa caixa e a fotobiografia, Bia Corrêa do Lago poderá finalmente se despedir do pai. “Faz cinco anos e meio que convivo com Rubem por meio de seu arquivo. No final do ano, quando eu lançar a última publicação, ele terá morrido de fato para mim.”