O filósofo Clóvis de Barros Filho subiu ao palco do teatro do Shopping Higienópolis na última segunda-feira, 31, para falar a uma atenta audiência durante duas horas. Ele também já esgotou outra data na próxima semana. O professor, de 58 anos, está acostumado com o público fiel, que busca inspiração a partir de suas reflexões - sejam escritas ou faladas. Ainda assim, rechaça qualquer comparação com os autores best-sellers de autoajuda: “Muitas destas ideias são, na verdade, refutadas por mim”.
A poucas quadras do teatro, há cerca de um mês, Barros Filho recebeu o Estadão em seu escritório para mostrar seu acervo pessoal à série Coleção de Livros. O espaço tem uma bancada dedicada a expor suas publicações. São mais de duas dezenas de obras, de A vida que vale a pena ser vivida, de 2010, à mais recente, Projeto de vida, lançada no ano passado.
Eu passo o tempo inteiro dizendo para as pessoas que, se a vida tem alguma chance de dar certo, é por intermédio do autoconhecimento. Você precisa saber quem é e, a partir daí, definir uma vida que te seja adequada.
Clóvis de Barros Filho, filósofo
O autoconhecimento, na visão de Barros Filho, se contrapõe às soluções fáceis vendidas por escritores campeões de venda. “Os livros de autoajuda vendem porque há uma dificuldade em tomar as rédeas da própria vida. Há uma angústia em ser livre”, reflete o professor. “Essas obras vêm para sanar isso. Se você não sabe o que fazer, eu te dou sete hábitos, dez lições, trinta estratagemas. E por aí vai.”
“Eu prefiro reler um livro que eu gosto do que ler algum que eu não gosto”, diz Barros Filho, ao lembrar que, durante a pandemia, revisitou autores de língua portuguesa que aprendeu a admirar ainda na escola.
“Eça de Queiroz é meu preferido. Eu já devo ter lido O Primo Basílio algumas tantas vezes." De José de Alencar e Machado de Assis, o filósofo diz ter revisitado as obras completas durante o período de confinamento.
O escritor, inclusive, revelou que acaba de finalizar um prefácio para um volume duplo da obra machadiana que vai combinar Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. A edição, publicada pela Citadel, ainda não tem previsão de lançamento.
“Tive que ler outra vez, porque chega uma hora que você nem lembra mais em qual livro está a Capitu, o Bentinho...”, brinca o autor, que já escreveu outros prefácios em parceria com a editora, como o de 1984, de George Orwell. É um dos maiores orgulhos de Barros Filho: “Tinha mais de 100 páginas e foi uma apresentação elogiada, mesmo fora do Brasil. Uma das poucas coisas que fiz que prestou.”
Apesar da paixão pela literatura, o acervo do escritório de Barros Filho tem uma predominância evidente: as obras de filosofia. Pescar uma ficção nas prateleiras é algo raro. Mas ali, entre os pensadores, está um clássico russo: Crime e Castigo, de Dostoievski. Não é ao acaso. “Tem a ver com essa relação íntima que a obra dele apresenta com algumas filosofias do século 19.”
“O mundo da vontade e da representação, mas sobretudo da vontade, de [Arthur] Schopenhauer [filósofo alemão], tem muito a ver com o subterrâneo do Dostoievski”, destaca Barros Filho. “Foi uma grata leitura, muito embora eu repita que o que me interessa na literatura é encontrar de modo diferente as ideias que circulam num campo que me é mais familiar.”
Clóvis de Barros Filho está no Instagram, no YouTube, grava podcasts. Tudo é alimentado por sua equipe. Ele não usa aplicativos de mensagens como o WhatsApp e rechaça o uso de inteligência artificial para escrever textos.
“Eu ainda prefiro fazer uma porcaria com as minhas próprias forças do que me servir desse artifício, que pode até ser útil para tarefas repetitivas. Mas no caso de um trabalho com alguma pretensão intelectual, é preferível que ele ainda resulte das sinapses, das articulações do espírito”, opina o professor.
Ele teve que, no entanto, se render aos livros digitais ao ser diagnosticado com a síndrome de Behçet, uma condição rara e autoimune. A doença causa feridas recorrentes nos olhos, na boca e nos órgãos genitais, exige medicamentos que suprimem o sistema imunológico e fez com que ele perdesse grande parte da visão.
“Claro que eu adoro o papel, mas por conta dessa impossibilidade [recorro] ao Kindle, que aumenta o tamanho da letra. E isso, pra mim, é fundamental. Como tudo, no começo, foi horrível, mas eu me acostumei", afirma o autor. A estratégia de Barros Filho agora é ir às livrarias físicas, tirar foto dos livros que deseja ler e, depois, baixar tudo em seus dispositivos de leitura: “O Kindle tem um acervo espetacular”.
Se a filosofia predomina entre os gêneros, a língua francesa faz uma boa disputa com o português quando o assunto é idioma nas estantes de Barros Filho. Ele viveu na França entre 1986 e 1990, onde fez mestrado e doutorado na Universidade de Paris.
“Lá, naquela época, era muito comum o mercado de livros de ocasião, como eles chamam. São livros usados, vendidos junto com os novos. No Brasil, esses exemplares estão nos sebos, mas por lá você entrava na livraria e encontrava o livro novo, e logo ao lado, um usado pela metade do preço.”
Do acervo adquirido em Paris, o professor destaca uma de suas obras preferidas: Da Horda ao Estado, de Eugène Enriquez. “É um livro que marcou minha trajetória. É muito bonito. Mostra a hipotética situação de estado de natureza, que [Thomas] Hobbes chamaria de guerra de todos contra todos, uma zona completa, até o estado moderno. Mas sob uma angulação que não é só histórica ou política, mas é psicanalítica."
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